Quando pensamos na mastigação, muitas vezes a associamos apenas ao ato de triturar os alimentos antes de engolir. No entanto, esse processo vai muito além de uma função mecânica — especialmente quando falamos do desenvolvimento infantil. Para crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA), a mastigação pode ter um papel ainda mais significativo, influenciando não apenas a alimentação, mas também aspectos sensoriais, motores, comportamentais e emocionais.
O TEA é uma condição do neurodesenvolvimento caracterizada por desafios na comunicação, interação social e comportamentos repetitivos. Cada criança dentro do espectro é única, e isso se reflete também na forma como se relaciona com os alimentos, as texturas e os estímulos sensoriais envolvidos na mastigação.
Por isso, compreender a importância da mastigação para crianças autistas é essencial. Este processo, que parece simples para muitos, pode ser um verdadeiro desafio para algumas crianças no espectro — mas também uma oportunidade de desenvolvimento. Neste artigo, vamos explorar como a mastigação atua como um estímulo neurossensorial e como ela pode ser trabalhada de forma consciente, respeitosa e eficaz no dia a dia.
O que é a mastigação e por que ela é tão importante?
A mastigação é um processo natural e essencial que envolve a trituração dos alimentos com os dentes, a movimentação da mandíbula e a coordenação dos músculos da boca, língua e bochechas. Embora pareça um simples hábito do cotidiano, a mastigação desempenha um papel muito mais amplo e profundo no desenvolvimento infantil — especialmente no caso de crianças autistas.
Função digestiva
A mastigação é o primeiro passo do processo digestivo. Ao triturar os alimentos, facilitamos a ação das enzimas digestivas e garantimos uma absorção mais eficiente dos nutrientes. Quando esse processo não ocorre adequadamente, podem surgir problemas como desconforto abdominal, prisão de ventre ou má absorção de vitaminas e minerais importantes.
Função neuromuscular
Durante a mastigação, diversos músculos e articulações são ativados e fortalecidos, o que contribui para o desenvolvimento da coordenação motora orofacial. Esse trabalho muscular é fundamental para que a criança desenvolva movimentos mais precisos e coordenados com a boca — o que se reflete também em habilidades como soprar, assoprar, sugar e articular palavras.
Função sensorial
A boca é uma das áreas mais sensíveis do corpo e, durante a mastigação, ela recebe diversos estímulos: textura, temperatura, sabor e consistência dos alimentos. Para crianças no espectro autista, que muitas vezes apresentam hipersensibilidade ou hipossensibilidade oral, esse contato sensorial pode ser desconfortável ou, ao contrário, pode gerar uma busca intensa por estímulos. Trabalhar a mastigação é também uma forma de promover regulação sensorial.
Função comportamental
O momento da alimentação também está relacionado a hábitos, comportamentos e interações sociais. Crianças que mastigam bem tendem a aceitar melhor uma variedade de alimentos, desenvolvem mais autonomia à mesa e se sentem mais confortáveis em situações sociais que envolvem refeições.
Conexão com a fala e a respiração
Mastigar bem fortalece os mesmos músculos usados para falar. A coordenação entre língua, bochechas e mandíbula ajuda na articulação das palavras, contribuindo para a clareza da fala. Além disso, a mastigação auxilia no posicionamento adequado da língua e no controle da respiração nasal, o que impacta diretamente na fala e até na qualidade do sono.
Por tudo isso, fica claro que a mastigação é muito mais do que triturar alimentos — ela é uma ferramenta poderosa para o desenvolvimento global da criança, especialmente para aquelas dentro do espectro autista.
Características alimentares comuns em crianças autistas
A alimentação de crianças autistas costuma apresentar particularidades que vão além do paladar. O que para muitos pode parecer apenas uma “manha” ou “birra”, na verdade está profundamente relacionado a como o cérebro dessas crianças processa os estímulos sensoriais. Por isso, compreender essas características é essencial para lidar com a alimentação de forma mais empática, respeitosa e eficaz.
Seletividade alimentar e preferência por texturas específicas
É muito comum que crianças no espectro apresentem seletividade alimentar, ou seja, aceitem apenas um número limitado de alimentos. Muitas vezes, essa seleção não está ligada apenas ao sabor, mas principalmente à textura e aparência dos alimentos. Algumas crianças, por exemplo, só aceitam alimentos crocantes ou, ao contrário, somente pastosos. Isso acontece porque o cérebro delas pode reagir de forma intensa ou diferenciada a estímulos que envolvem toque, consistência e temperatura.
Hipersensibilidades sensoriais (gosto, cheiro, textura)
O Transtorno do Espectro Autista envolve, entre outros fatores, alterações no processamento sensorial. Algumas crianças são hipersensíveis, ou seja, sentem cheiros, sabores e texturas com muito mais intensidade do que outras. Um alimento com cheiro mais forte, uma temperatura um pouco acima do comum ou uma textura mais fibrosa pode ser extremamente desconfortável. Outras crianças podem apresentar hipossensibilidade, buscando estímulos mais intensos — como alimentos com sabores marcantes ou texturas mais desafiadoras.
Resistência a novos alimentos e mudanças na rotina
A previsibilidade é algo muito importante para a maioria das crianças autistas. Mudanças na rotina, incluindo a alimentação, podem gerar insegurança e desconforto. Isso se reflete na resistência a experimentar novos alimentos, novos formatos ou apresentações. Mesmo pequenas variações, como a mudança de marca de um produto ou a forma de preparo, podem ser motivo para recusa alimentar.
Esses desafios, quando não compreendidos, podem gerar frustrações para a família e aumentar o estresse da criança. Por isso, é fundamental olhar para a alimentação com empatia, buscar orientação profissional e, acima de tudo, respeitar o tempo e os limites da criança, oferecendo suporte gradual e acolhedor.
Como a mastigação influencia no desenvolvimento global da criança autista
A mastigação não é apenas uma função ligada à alimentação — ela está diretamente conectada a várias áreas do desenvolvimento infantil, especialmente no caso de crianças autistas. Quando a mastigação é estimulada de forma adequada, seus benefícios vão além da nutrição, alcançando aspectos como fala, regulação emocional e até comportamento.
Estímulo dos músculos orofaciais e impacto na fala
Os músculos utilizados durante a mastigação — como os da mandíbula, língua, bochechas e lábios — são os mesmos envolvidos nos movimentos da fala. Ao mastigar, a criança fortalece essa musculatura, melhora sua coordenação motora oral e desenvolve maior controle sobre os movimentos da boca. Isso favorece a articulação das palavras, a produção de sons e até mesmo a expressão facial, aspectos que podem ser desafiadores para muitas crianças no espectro autista.
Regulação sensorial e emocional
Mastigar proporciona uma variedade de estímulos sensoriais — táteis, proprioceptivos, gustativos — que ajudam a criança a perceber melhor seu próprio corpo (consciência corporal) e o ambiente ao redor. Para crianças com TEA, que muitas vezes enfrentam dificuldades na autorregulação sensorial, a mastigação pode funcionar como uma forma de acalmar, organizar e equilibrar os estímulos que recebem. É por isso que algumas crianças buscam alimentos mais duros, crocantes ou mastigam objetos: estão, intuitivamente, buscando essa regulação.
Além disso, mastigar pode ajudar na regulação emocional. Atividades orais rítmicas, como mastigar ou sugar, são conhecidas por ativar áreas do cérebro relacionadas ao relaxamento e à sensação de segurança, ajudando a reduzir a ansiedade e o estresse.
Conexão entre mastigação, foco e comportamento
Estudos e práticas clínicas apontam que a mastigação pode ter influência direta no nível de atenção e comportamento da criança. Isso ocorre porque o ato de mastigar estimula o cérebro, ativa o sistema nervoso parassimpático (responsável pelo relaxamento) e promove maior equilíbrio entre ação e pausa. Crianças que mastigam bem tendem a se sentir mais organizadas sensorialmente, o que impacta positivamente na concentração, no comportamento e nas interações sociais.
Portanto, promover e incentivar a mastigação vai muito além de ensinar a criança a comer melhor. Trata-se de um investimento no desenvolvimento global, que pode refletir em diversas áreas da vida da criança — da comunicação à qualidade de vida.
Sinais de alerta: quando a mastigação pode ser um desafio
Observar como a criança lida com os alimentos no dia a dia é essencial para identificar possíveis dificuldades relacionadas à mastigação. No caso de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA), alguns sinais podem indicar que o ato de mastigar está comprometido ou que precisa de maior atenção e estímulo. Reconhecer esses sinais precocemente é fundamental para evitar impactos negativos no desenvolvimento global da criança.
Preferência por alimentos pastosos ou líquidos
Uma das manifestações mais comuns é a recusa por alimentos sólidos ou com maior consistência. Muitas crianças autistas preferem alimentos pastosos, cremosos ou líquidos, pois esses exigem menos esforço motor e oferecem menos estímulos sensoriais na boca. Essa preferência pode indicar dificuldades com a coordenação motora oral, hipersensibilidade sensorial ou até mesmo insegurança diante de novas experiências alimentares.
Engolir sem mastigar e evitar texturas mais firmes
Outro sinal de alerta é o hábito de engolir o alimento praticamente inteiro, sem realizar a mastigação adequada. Isso pode ocorrer por falta de consciência do processo, dificuldade em coordenar os movimentos ou mesmo por ansiedade frente ao alimento. Além disso, muitas crianças evitam texturas mais firmes ou granuladas, como carnes, legumes crus ou grãos, demonstrando desconforto ou rejeição imediata ao contato com essas consistências.
Reações adversas a estímulos táteis na boca
Reações como ânsia, náusea, choro, empurrar o prato ou até mesmo gritar diante de certos alimentos podem indicar uma hipersensibilidade tátil oral. A presença de texturas variadas, temperaturas diferentes ou sabores intensos pode gerar um verdadeiro colapso sensorial em algumas crianças. Essas reações não são birra ou teimosia, mas sim respostas do corpo a estímulos que são percebidos de forma intensa e, muitas vezes, dolorosa.
Reconhecer esses comportamentos como sinais de dificuldade e não de desafio comportamental é o primeiro passo para buscar apoio adequado. Profissionais como fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e nutricionistas especializados no TEA podem auxiliar na avaliação e na construção de estratégias seguras e eficazes para promover a mastigação de forma respeitosa e gradual.
Estratégias e estímulos para melhorar a mastigação
Quando a mastigação representa um desafio para a criança autista, é possível — e necessário — investir em estratégias que tornem esse processo mais natural, confortável e eficaz. Estimular a mastigação vai além de apenas oferecer alimentos: trata-se de um trabalho multidisciplinar que respeita o tempo, os limites e as necessidades sensoriais de cada criança.
Importância do acompanhamento com fonoaudiólogo e terapeuta ocupacional
O primeiro passo é buscar ajuda profissional. A atuação conjunta de fonoaudiólogos e terapeutas ocupacionais é fundamental nesse processo. O fonoaudiólogo avalia o funcionamento da musculatura orofacial, a coordenação motora oral e a capacidade de mastigar, além de ajudar no desenvolvimento da fala. Já o terapeuta ocupacional trabalha a parte sensorial, ajudando a criança a se organizar frente aos estímulos que a mastigação envolve. Juntos, esses profissionais constroem um plano de intervenção individualizado, respeitoso e eficaz.
Técnicas de dessensibilização oral
A dessensibilização oral é uma técnica terapêutica que visa acostumar a criança, de forma gradativa e segura, a diferentes estímulos na região da boca. Pode envolver massagens na face e ao redor da boca, toques leves com escova de dentes, cotonetes, panos macios ou até mesmo a introdução de pequenos objetos (seguros e próprios para isso) que ajudam a preparar a região para a mastigação. O objetivo é reduzir a hipersensibilidade e permitir que a criança aceite melhor os alimentos.
Brinquedos mordedores e exercícios lúdicos
O uso de mordedores terapêuticos e outros brinquedos sensoriais específicos é uma maneira divertida e funcional de estimular os músculos da mastigação. Existem opções com diferentes texturas, formatos e resistências, que ajudam a fortalecer a musculatura e oferecer estímulos proprioceptivos (de pressão) agradáveis à criança. Além disso, atividades lúdicas, como imitar animais mastigando, fazer caretas ou brincar com canudos grossos, também são formas eficazes de treinar os movimentos da boca de forma leve e prazerosa.
Introdução gradual de diferentes texturas alimentares
Quando a criança apresenta seletividade alimentar ou recusa de certos alimentos, é importante fazer a introdução de novas texturas de forma progressiva. Isso pode ser feito misturando alimentos familiares com outros de textura ligeiramente diferente, alterando a forma de preparo aos poucos ou apresentando o mesmo alimento em formatos variados (exemplo: batata cozida, amassada, assada, em chips). A repetição, a previsibilidade e o respeito ao tempo da criança são elementos essenciais nesse processo.
Estimulando a mastigação com paciência, criatividade e apoio especializado, é possível promover ganhos significativos não só na alimentação, mas também na comunicação, no comportamento e na qualidade de vida da criança como um todo.
O papel da família e da equipe multidisciplinar
O processo de estimular e desenvolver a mastigação em crianças autistas não deve ser enfrentado sozinho. Ele exige o envolvimento ativo da família, o suporte da escola e a orientação de uma equipe multidisciplinar. Quando todos caminham juntos, respeitando os limites e celebrando cada avanço, os resultados são muito mais significativos e duradouros.
Orientações práticas para os pais em casa
Os pais desempenham um papel essencial no dia a dia da criança, sendo os primeiros a observar dificuldades e a aplicar estratégias de forma consistente. Algumas práticas simples podem fazer toda a diferença, como:
Oferecer refeições em ambiente calmo, com poucos estímulos visuais e sonoros;
Respeitar o tempo da criança para explorar e experimentar novos alimentos;
Incentivar o uso de mordedores e brinquedos que estimulem os movimentos da boca;
Fazer da refeição um momento prazeroso e sem cobranças excessivas;
Repetir e manter uma rotina alimentar, sem forçar ou punir recusas.
A paciência e o reforço positivo são chaves nesse processo. Pequenos avanços devem ser reconhecidos e celebrados!
Como a escola e os profissionais de saúde podem ajudar
Na escola, educadores e cuidadores também podem ser aliados importantes. Com orientação adequada, eles podem:
Respeitar as preferências alimentares da criança sem excluir oportunidades de experimentar;
Evitar comparações com outras crianças;
Adaptar lanches e momentos de alimentação de forma inclusiva;
Observar comportamentos alimentares e comunicar à família ou equipe clínica qualquer mudança.
Do lado clínico, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, nutricionistas e até psicólogos têm papéis complementares e fundamentais. Juntos, eles avaliam a criança, propõem intervenções específicas e orientam a família com estratégias individualizadas.
A importância do trabalho em conjunto
O sucesso no estímulo à mastigação não depende de um único fator, mas sim da integração entre os ambientes onde a criança convive. Quando família, escola e profissionais atuam de forma alinhada, respeitando o perfil sensorial e comportamental da criança, é possível promover uma evolução real — não apenas na alimentação, mas também no bem-estar emocional, social e cognitivo.
Esse trabalho em conjunto cria uma rede de apoio que acolhe, compreende e fortalece a criança, permitindo que ela avance no seu próprio ritmo, com segurança e autonomia.
Conclusão
Mastigar é muito mais do que um ato automático do corpo. Para crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA), a mastigação representa um processo complexo e essencial que vai além da alimentação: ela está diretamente ligada ao desenvolvimento da fala, ao equilíbrio sensorial, à autorregulação emocional e até ao comportamento social.
Por isso, é fundamental que pais, cuidadores, educadores e profissionais da saúde estejam atentos aos sinais de dificuldade e comecem o quanto antes a observar, estimular e apoiar a criança nesse aspecto. A intervenção precoce, guiada por uma equipe especializada, pode evitar desafios maiores no futuro e proporcionar uma melhora significativa na qualidade de vida da criança.
Se você é mãe, pai, cuidador ou educador, saiba que você não está sozinho(a) nessa jornada. Cada pequeno progresso deve ser valorizado. É normal haver dias mais difíceis, mas com paciência, apoio e carinho, é possível construir um caminho mais leve, saudável e acolhedor para a criança.
A mastigação, embora pareça simples, é um ponto-chave no desenvolvimento global de crianças autistas — e quando é trabalhada com atenção e afeto, abre portas para muitas outras conquistas.